Critérios diagnósticos de morte encefálica

O fenômeno singular da morte é encarado de maneira distinta nas mais diversas sociedades ao redor do mundo. Cada uma delas apresenta uma visão peculiar; calcada em princípios raciais, culturais e religiosos, entre outros. Apesar disso, a morte em si é rigorosamente a mesma e na maior parte das vezes, não é um evento, mas sim um processo, onde os vários órgãos e sistemas de manutenção da vida entram em colapso progressiva e sucessivamente1,2,3.

Por outro lado, nos últimos anos, esforços têm sido empreendidos para a obtenção de uma conceituação científica e socialmente adequada deste momento que possa ter uma aplicabilidade universal. Isto, além de promover uma padronização dos critérios para seu diagnóstico nas nações em diferentes estágios de desenvolvimento, busca contemplar os avanços notáveis da ciência médica na área de transplantes de órgãos.

Importante notar que o conceito de morte transforma-se e modifica-se conforme a sua colocação, seja esta filosófica ou científico-biológica. Assim, um corpo que apesar de um coração ativo, apresente abolição persistente das atividades cerebrais, provavelmente estará morto, e caso esta suposição realmente se confirme, um potencial doador estaria nascendo. Como percebemos, a definição clássica de morte até recentemente aceita - "parada irreversível de batimentos cardíacos e movimentos respiratórios", torna-se nos dias atuais, obsoleta e inapropriada em algumas situações. Com o notável progresso observado na área de biotecnologia, particularmente na de terapia intensiva, com o advento de máquinas sofisticadas e drogas poderosas, o sistema cardio-respiratório de pessoas irreversivelmente inviabilizadas do ponto de vista neurológico, poderia ser mantido em funcionamento por um tempo indefinido. Um exemplo hipotético, porém desgraçadamente freqüente em nosso país, seriam aqueles pacientes sofredores de trauma de crânio (TCE) grave, onde o encéfalo estaria morto e a manutenção do sistema cardio-respiratório sendo possível através da utilização dos formidáveis recursos bio-tecnológicos contemporâneos. Esta situação foi descrita pioneiramente por Mollaret em 1959 na França, a qual denominou "coma depassé", não se podendo em tais casos, aplicar a definição da "morte clássica", mas sim, empregar critérios diagnósticos de morte encefálica (ME)4,8.

Desta maneira, a adequação dos serviços médicos a esta nova realidade é necessária e justificável, não somente por motivos econômicos ou sociais, mas principalmente por argumentos humanitários. Sabe-se que os leitos de UTI são limitados e dispendiosos e a manutenção de uma vida vegetativa, isto é, sem qualquer perspectiva de recuperação, poderá bloquear indefinidamente sua utilização por outros indivíduos com melhores prognósticos. Além disso, cabe ressaltar que em tal situação, muito freqüentemente, os esforços dispendidos para o atendimento e manutenção artificialmente prolongada dos batimentos cardíacos, equivocadamente interpretados como sinal de que o paciente está vivo, acabam arruinando a família e promovendo descrédito a própria medicina6,12.

Olhando sob outro prisma, nota-se o espetacular progresso médico-científico na área de transplantes nas últimas décadas, propiciando um interesse crescente na sociedade quanto a conceito e critérios diagnósticos de ME, pela óbvia razão que neste grupo de pacientes encontram-se doadores de múltiplos órgãos em potencial. Aliás, gostaríamos de enfatizar que desperdício de órgãos viáveis para transplantação é algo abominável em qualquer nação atualmente, independentemente do seu status sócio-econômico-cultural. Por isso, recomendamos que um enfoque sereno e educado do tema, firmado estritamente em bases humano-científicas e completamente despido de qualquer interesse pecuniário, deveria ser empregado junto à sociedade brasileira em geral, e catarinense em particular, para a eliminação de preconceitos anacrônicos bizarros que obstaculizam sua cooperação.

Finalmente, recordamos aos colegas que quem atesta ME deve ter muito claro em mente que apenas um lapso de tempo o separa das condições do diagnosticado, razão pela qual deveria se portar com máxima discrição, educação e segurança que o momento delicado requer. Assim procedendo, familiares serão mais receptivos à irreversibilidade da situação e mais propensos a doação de órgãos sadios, vitais para outros seres humanos que sobrevivem em precárias condições clínicas.

Tendo em vista estes fatos, nosso grupo, embasado em criteriosa e recente revisão da literatura mundial, propõe critérios diagnósticos de ME para implantação no Estado de Santa Catarina. Recomenda-se especial cautela na aplicação dos mesmos em crianças menores de 5 anos de idade, devido à imaturidade característica do SNC nesta faixa etária poder induzir a conclusões indevidas. A avaliação do paciente possui fases e subfases que devem ser criteriosamente obedecidas para confirmação diagnóstica de ME. Ela deve ser realizada por uma junta de no mínimo dois médicos com experiência no manejo de pacientes comatosos, NÃO PERTENCENTES EM NENHUMA HIPÓTESE A EQUIPE DE TRANSPLANTES, sendo um deles, necessariamente, neurologista ou neurocirurgião14.

FASES A SEREM CUMPRIDAS

I - Descartar Causas Reversíveis de Coma Capazes de Mimetizar ME:

1. Hipotermia: sabe-se que a hipotermia pode dar resultado falso positivo de ME, particularmente quando o corpo está abaixo de 32,2oC (temperatura retal), sendo necessário restauração a normotermia antes de qualquer especulação diagnóstica.

Atenção: Hipotermia é um método seguro e eficaz de combate a edema cerebral grave, condição responsável por grande parcela dos mortos encefálicos. Esta técnica, está sendo desenvolvida pela Universidade de Heidelberg/Alemanha e certamente ganhará importância crescente nos próximos anos11. Há evidências de que seu emprego precoce, imediatamente após o insulto traumático, contribuirá para uma redução expressiva dos indivíduos que desenvolvem ME pós TCE grave em nossa sociedade.

2. Choque: Devido ao choque, independendo de sua etiologia, a diminuição de fluxo sangüíneo cerebral pode provocar uma suspensão transitória da atividade elétrica cerebral e um quadro clínico aparentando ME. Logo, é imprescindível a tentativa de manutenção da pressão arterial antes de diagnosticarmos ME em vítimas de choque.

3. Intoxicação por drogas: parada transitória das funções encefálicas pode ser induzida por overdose de múltiplas drogas sedantes do SNC, como barbitúricos, benzodiazepínicos, entre outras. Quando se suspeita disso, um "screening" deve ser realizado e, nesses casos, o uso de potencial evocado pode ser de grande valia, pois é incomum que essas drogas afetem o teste. É expressamente recomendável um período de observação mais prolongado nos casos em que aventa-se esta possibilidade; principalmente quando da suspeita de barbitúricos, devido a longa meia-vida destas drogas, com sua rica recirculação êntero-hepática e drástica redução da motilidade gastrintestinal.

4. Distúrbios metabólicos: algumas condições como encefalopatia hepática, coma hiperosmolar, hipoglicemia e uremia podem levar a coma profundo, sendo que estas alterações metabólicas devem ser consideradas antes de determinar a irreversibilidade das funções encefálicas e esforços devem ser feitos para corrigi-las. Nos casos suspeitos, exames complementares deverão ser realizados em todos eles.

II - Exame Clínico e Teste da Apnéia:

1. Reflexo pupilar: deve ser realizado com fonte luminosa de boa intensidade, observando se há resposta tanto direta quanto consensual e, se necessário, utilizar lupas e em ambientes com baixa luminosidade.

2. Reflexo corneano: explorar utilizando mecha de algodão, tocando alternadamente as córneas e observando-se a presença de fechamento palpebral e/ou desvio conjugado dos olhos para cima (fenômeno de Bell). Atenção: algodão seco é o material a mais adequado para ser utilizado!

3. Reflexo oculocefalógiro: explora-se com movimentos rápidos de rotação da cabeça no sentido horizontal e flexão e extensão do pescoço. Na resposta normal, observa-se um deslocamento ocular no sentido contrário aos movimentos realizados. Atenção: devido ao risco de lesão medular estas manobras são proibitivas em pacientes vítimas de trauma, pelo menos até que se tenha evidência radiológica de integridade da coluna vertebral.

4. Reflexo oculovestibular: explora-se elevando a cabeça do paciente a 30 graus do plano horizontal; determinar previamente por otoscopia a permeabilidade do conduto auditivo e aplicar lentamente 50 ml de água à 4oC sobre a membrana timpânica, observando se há desvio ocular. Resposta normal seria desvio em direção ao estímulo.

5. Reflexos cocleopalpebral, sucção e mentoniano: são de pouco valor discriminativo. Reflexos faríngeos, de deglutição e de tosse: muitas vezes são comprometidos pelo uso de cânulas endotraqueais para ventilação, como também pelo ressecamento das mucosas. Entretanto, sem dúvida, podem ser pesquisados como os reflexos supracitados, pois quanto mais dados disponíveis, maior será a segurança do diagnóstico de ME. Relembramos o fato de que este é de caráter essencialmente clínico.




6. Teste da apnéia: tem como intuito comprovar se há movimento ventilatório espontâneo pela estimulação de centros respiratórios pela hipercapnia de no mínimo 60 mmHg. O teste consiste inicialmente em observar se o paciente não realiza nenhum esforço contrário à ventilação mecânica. Após 15 minutos, o paciente é ventilado durante 10-20 minutos com 100% de oxigênio e colhe-se uma gasometria arterial que deve mostrar um pO2 de 100 ou mais mmHg. Na seqüência, ele é desconectado do ventilador e com um catéter traqueal se administra oxigênio a 6 litros/minuto. Por um período de 10 minutos, observa-se se há movimento ventilatório e colhe-se outra gasometria. O teste é dito positivo quando a pCO2 da segunda gasometria atingir um nível mínimo de 60 mmHg sem nenhum movimento ventilatório concomitante. Caso pCO2 seja menor que 60 mmHg, o teste deve ser repetido e, utilizando do aumento médio de pCO2, de 3 mmHg/minuto em adultos, para cálculo do período de observação.

Após a constatação clínica e registro de coma não reativo do paciente, este deve ser observado por um período mínimo de 12 horas, após o qual dever-se-á repetir a avaliação clínica e registrar se houve alguma modificação do quadro inicial. Caso o exame permaneça inalterado, uma nova avaliação clínica deverá ser realizada 12 horas após. Nesta ocasião, se o paciente persistir em coma profundo, com ausência de resposta na pesquisa dos reflexos enumerados acima e tiver um teste da apnéia positivo, deverá ser estabelecido o diagnóstico de ME.

III - Exames Complementares

1. EEG: deve demonstrar ausência de atividade elétrica cerebral. Este procedimento deverá ser realizado conforme as normas técnicas da American EEG Society (detalhes técnicos podem ser obtidos no "Minimal Technical Standards fo EEG Recording in Suspected Cerebral Death" - Guidelines in EEG 1980, Atlanta, American Electroencephalographic Society, 1980, section 4, pp. 19-241)7.




2. Potencial evocado: é um exame que poderia ser utilizado quando há alguma limitação para a realização do exame clínico ou como uma opção confirmatória extra. Pela sua praticidade, deverá ser o exame de eleição para confirmação de ME quando houver pendências legais ou necessidade de diagnóstico precoce.

3. Angiografia de 4 vasos encefálicos ou outros métodos de medição do fluxo sangüíneo cerebral, que demonstre ausência de fluxo sangüíneo cerebral.

4. Ultrassonografia: poderá fornecer informações valiosas sobre ausência de circulação sanguínea em território das artérias carótidas. Quando disponível substitui angiografia cerebral com o charme de ser um estudo não agressivo13.


IV - Comentários Adicionais

O período de observação clínica e documentação da cessação da função cerebral por um período mínimo de 6 horas JUNTAMENTE com ausência de atividade elétrica cerebral OU perfusão sangüínea cerebral, estabelece o diagnóstico de ME e torna dispensável a necessidade de reavaliações clínicas. Todavia, conforme já comentado, na ausência desses testes complementares, o período de observação clínica deve ser no mínimo de 24 horas. Logo, gostaríamos de enfatizar que exames complementares não são pré-requisitos necessários para se firmar o diagnóstico de ME2,3,8. Contudo, reconhecemos que sua disponibilidade permitirá anteciparmos com segurança o diagnóstico desta condição.

Uma vez diagnosticada ME, a junta deve preencher o atestado de óbito em duas vias, sendo uma encaminhada a conselho de ética médica da instituição e outra anexada ao prontuário. Nesta hora, apoio psicológico aos familiares é imprescindível. Além disso, o médico responsável deverá ser esclarecedor e objetivo quando expõe aos mesmos a irreversibilidade da situação. Assim como deveria transmitir apropriadamente sentimentos de solidariedade pela perda de um ente querido10.
Neste momento, algumas iniciativas deveriam ser implementadas se o corpo do indivíduo em ME for identificado como um doador em potencial. A primeira delas seria um contato com os familiares responsáveis. Entretanto, devido ao seu caráter epidêmico nos dias atuais, um teste para HIV deveria ser feito previamente em todo indivíduo candidato à doação, não importando comportamento prévio ou classe social, pelos riscos inerentes e óbvios desta condição. Além disso, devemos ter na memória que outras sérias enfermidades infecto-contagiosas continuam existindo. A despeito de serem menos freqüentes, algumas delas são de tal gravidade que sobrepujam a famosa SIDA em termos prognósticos (Jakob-Creutzfeldet por exemplo, veja mais em Demência e suas causas) e os indivíduos receptores deveriam serem poupados de tal desatino.

Finalizando, gostaríamos de realçar mais uma vez que o diagnóstico de ME é fundamentalmente clínico. A despeito disso, testes complementares serão necessários quando da avaliação de crianças até 5 anos de idade5. Da mesma forma, pacientes com lesões infratentoriais, independentemente de sua idade, deveriam ser objeto de avaliação muito cautelosa, pois muitas vezes seu quadro clínico indefinido exigirá o uso de exames complementares diversos para a confirmação diagnóstica7,9,13.

O presente ensaio apresenta uma proposta de critérios diagnósticos de ME à sociedade médica. Conceitos nesta área estão em contínua evolução. Por esta razão, este documento deveria ser objeto de aprimoramento permanente e os colegas são convidados à reflexão e a colaborarem neste desígnio.
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